BRAVOS NAVEGADORES PORTUGUESES
Klerman Wanderley Lopes - Janeiro de 2005
Introdução
O estudioso de História Postal terá reparado que, em numerosas cartas para o exterior do princípio do século XIX, encontra-se grafado “1ª, 2ª 3ª e até 4ª via” no interior delas, principalmente as comerciais. Na sua frente são comuns as expressões “Deus guarde”,
‘Deus guie”, etc.
1811 – SOBRECARTA DO RIO DE JANEIRO PARA O PORTO
Capa de sobrecarta do Rio de Janeiro para Porto/Portugal com carimbo linear CORºDOR.JANRO” e taxas 80 (riscada) 20 e 150 réis. Indicação manuscrita “2ª Via”.
Tal fato se deve à grande incerteza quanto ao sucesso das viagens marítimas à época. Após 1803, com a cessação do serviço de Correio Marítimo Português previsto pelo Alvará de 20 de janeiro de 1798, o transporte de correspondência passou a ser realizado pelos navios de guerra e os mercantes, sendo que alguns desses barcos recebiam autorização real para receberem armamentos visando à sua defesa. Barcos à vela de pequeno porte, eram totalmente dependentes das condições climáticas, das imprecisas cartas de navegação e, mesmo quando tudo corria bem, estavam sujeitos à hostilidade de piratas que infestavam os nossos mares, atraídos pelo crescente fluxo de transporte das riquezas que, a partir do Novo Mundo, sustentava os privilégios dos dignitários europeus.
1797-DECRETO SOBRE FIM DO OFÍCIO CORREIO-MOR – A0128
1797-Decreto Real que retorna o Correio Real à Real Coroa, provendo com justa indenização. Este decreto extingue o Ofício de Correio-Mor a partir de então, por ordem da rainha, D. Maria I (1734-1816), assinado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho. (18-01-1797).
Além, daquelas razões de ordem política motivavam a ação de aventureiros que, em navios armados, fustigavam as embarcações de comércio. Denominados corsários, agiam por conta de suas próprias nações, como os franceses, ingleses e holandeses e por vezes eram contratados por outros governos, quando havia interesse em prejudicar as atividades comerciais de outros países.
Tal foi o caso que ilustraremos a seguir: há muito tempo Portugal cobiçava os territórios situados ao sul da província de São Pedro e, desde 1811 envolveu-se em conflitos com a população local, liderada pelo general Jose Gervasio Artigas e com os argentinos, que tinham a mesma pretensão.
Em 1820 tropas portuguesas ocuparam Montevidéu e, após longa série de batalhas que culminaram com a derrota do exército lusitano em 1827, a Inglaterra mediou acordo que garantiu a Independência do Uruguai.
Durante o período de hostilidades o General Artigas contratou corsários para atacar os navios portugueses que se dirigiam à Europa.
Epopéia no mar
Imagino que seja de utilidade para o especialista em História Postal conhecer o quão difícil era para os Capitães de Mar portugueses o desempenho das tarefas de navegação, enfrentando toda a sorte de obstáculos.
Ilustrando as agruras da navegação à vela no primeiro quartel do Século XIX, transcrevo cópia de um Ofício do Capitão de Mar e Guerra Bernardino Pedro de Araujo, comandante do navio mercante armado “Princesa do Brasil”, relatando os combates que teve com um Corsário Insurgente.
Notícia compilada da Gazeta de Lisboa nº 208, de 3 de setembro de 1819, pelo meu grande amigo e incansável estudioso do Correio Marítimo, Dr. Romano Caldeira Câmara.
Na grafia original:
Referência: Navio Mercante Armado “Princesa do Brasil” e navio Hércules” ...”seguindo viagem do Rio de Janeiro para a cidade de Lisboa, no dia de sexta feira 2 de julho de 1819, às cinco horas da manhã se viu na alheta de estibordo uma embarcação que seguia o rumo de Leste; assim como nós com vento sudoeste bonançoso. Às onze horas e um quarto, tendo-se aproximado com muita rapidez, vi ser um Brigue; içei bandeira e flâmula Portuguesa e lhe fiz fogo com um dos guarda-lemes e, não tendo no espaço de um quarto de hora içado bandeira alguma, lhe fiz outo tiro; içou então bandeira e flâmula inglesa; e vendo que não desvelejava, lhe mandei fazer fogo.
Achando-se ele já em pequena distância ao meio dia, Lat. Nº 39.º 12’, e Long. Nº 36.º 3’ de Greenwich, carregou a vela grande e eu meti de ló a oferecer-lhe o costado, o que ele fez também arriando a bandeira Inglesa e içando a dos Insurgentes, que firmou com uma banda, matando-me três homens.
Continuando o fogo por 10 minutos, arribou para a minha pôpa, o que eu igualmente fiz, oferecendo-lhe o costado de bombordo, onde houve um vivíssimo fogo de parte a parte, que durou duas horas e meia.
Deitou então o Corsário em cheio, pondo-se em distância suficiente para tapar rombos e reparar os danos da accção, fazendo eu o mesmo, endome causado muito dano na mastreação, velame, maçame e uma andaima de pano perdida, vindo metade da verga grande abaixo no conflito, entrando igualmente nessa ruina alguns ovens de enxarcias reais, estai do traquete e a maior parte dos cabos de laborar, servindo-me de alguns que havia mandado dobrar. O mastareo do velacho foi passado por uma bala de metralha de 36, o costado com tres rombos ao lume d’água de balas de 18 e mui crivado de metralhas. - Vi que o Corsário tinha dez portas e trazia montadas oito coronadas de calibre 18 por banda e uma peça de 36, que foi a que me causou todo o dano na mastreação, velame e aparelho. Tive mais cinco feridos, sendo dois gravemente. A mim, uma bala de piramede me deitou o óculo fora da mão, deixando-lhe impressa a cavidade, o qual conservo.
Tendo eu logo que acabei a acção tratado de me arranjar para outra, eram cinco horas e três quartos, o Brigue se dirigiu à minha pôpa e achando-se já próximo, meti de 16 e lhe ofereci novo combate, o que ele evitou metendo igualmente de 16 e não o podia alcançar pela grande diferença de marcha. Conservando-se assim emparelhado comigo todo o resto da tarde e de noite, puxou para minha proa, passando para sotavento a tomar o Navio “Hércules; mas arribando eu sobre ele, deitou em cheio e se pos fora de vista, tornando a aparecer por meu barlavento às 3 horas da manhã e aí se conservou fora do tiro de bala nos dias 3 e quatro. No dia 5 às 10 horas da manhã, tendo de todo acalmado o vento, deitou os remos fora e se dirigiu para nós, mas tornando a vir aragem com que se podia dar movimento ao Navio, meteu os remos dentro e desistiu do seu projecto. Sendo onze horas voltou o vento a acalmar, deitou os remos fora e se dirigiu à minha pôpa; porém arribando de per si o Navio, nos ficou pelo través de bombordo e tendo-se aproximado a tiro de metralha, içei minha bandeira e com ele rompi o fogo; dirigiu-se para a minha proa donde lhe fiz fogo com os cachorros e passando para meu estibordo se firmou no meu travez por espaço de uma hora a tiro de espingarda; daqui passou para a ré do meu portaló, onde se demorou meia hora, veio depois à minha pôpa onde se demorou pouco tempo, havendo de parte a parte em todas essas posições um fogo activíssimo. Passando-se daqui para meu bombordo, firmou-se no travez a meio tiro de espingarda, onde houve recíproco e vivíssimo fogo por duas horas e meia. Desta posição fez cabeça com os remos, ficando às mezas grandes, projectando abordar; mas continuando nós o fogo, se foi passando para as mezas da gata, recebendo muito fogo de artilharia e mosquetaria, que em todos os precedentes pontos obrou em consequência da proximidade. Dirigiu-se então pela minha pôpa remando para o Navio “Hércules”, continuando nós o fogo até muito próximo de lhe abordar.
Durou esta acção quatro horas e dez minutos; ficaram-me cortadas as enxarcias reais, a verga do traquete partido no terço, o estai da gavea e todos os cabos de laborar, brandais, enxarcias da gavea, etc; duas balas de 18 cravadas no mastro grande; seis ao lume d’água, o costado todo crivado de metralha; mastaréos da gavea e gata escalados por balas e muitos rombos pelas obras mortas, e outra andaima de pano perdida. - O corsario pegou a reboque no Navio “Hercules” e o conduziu fora do alcance de bala.
Tive nesta acção sete mortos e sete feridos, entrando em um número destes o meu segundo Oficial Piloto com as pernas quebradas logo ao princípio da acção, do que morre. Eu tive a felicidade de que, passando-me uma bala de metralha a copa do chapéu pela frente, me saiu pela parte oposta, indo em direcção oblíqua, sentindo levar porção de cabelos no lugar do craneo.
O inimigo foi igualmente muito destroçado nas duas acções, pois se lhe fizeram muitos rombos, todo o velame crivado, o maçame cortado e algumas vergas partidas.
Às sete horas e meia recebi a bordo trinta e oito pessoas que faziam a guarnição e passageiros do Navio “Hércules” vindas na lancha do mesmo Navio. - A esta confessaram que tinham tido nas duas acções 24 mortos, um grande número de feridos e que havia vinte dias que tinham saído da América Inglesa. Também perguntaram pela outra Galera que, em nossa companhia, saira do Rio de Janeiro.
- O comandante do Navio “Hércules”, sendo levado a bordo do Corsario, esteve na câmara com o Comandante Americano-Inglês, que estava ferido no peito, arquejando entre travesseiros.
A mesma guarnição do “Hércules” me asseverou que quantos lhe tinham saltado dentro se achavam feridos mais ou menos; o que não podia deixar de ser, visto o muito fogo que se fez de artilharia e armas de mão em uma tão curta distância.
Pela presente exposição (dirigida ao Secretário dos Negócios da Marinha), Vossa Excelência verá o esforço que a Guarnição de um Navio Mercante Armado fez para destruir e repelir um inimigo tão poderoso em forças, fazendo-se, desse modo, digna da Régia contemplação de S. M. (Sua Magestade o Rei), que não deixará de atender a vassalos tão beneméritos, que com tanta constância sustentaram a dignidade da bandeira, a honra da sua Nação e os direitos de S.M. Deos guarde a V. Excia. muitos anos.
Bordo do Navio “Princeza do Brazil”, - Faial, 20 de julho de 1819.
Assinado: Bernardino Pedro Araujo, Capitão de Mar e Guerra Graduado - Comandante”
A narrativa dessa ação heroica não se prende ao rigor histórico, posto que unilateral, mas bem dá uma noção das dificuldades enfrentadas por aqueles bravos homens de mar. A eles, a minha homenagem.
Brigue - Início do Século XIX
BIBLIOGRAFIA:
CÂMARA, Dr. Romano Caldeira. A História Postal Marítima em Portugal: Minigráfica, Lisboa, 1994.
CARNEIRO, David. História da Guerra Cisplatina. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946
CARVALHO, Carlos Delgado de. História Diplomática do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1998.
LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996