Os primórdios do Correio de Itabira: duas histórias
Nós, filatelistas, com frequência nos deparamos com documentos interessantes. Recentemente adquiri uma coleção de selos e descobri em uma carta esta preciosidade, que mostra o jeito mineiro e itabirano de negociar. Trata-se de uma carta do período do Império, escrita precisamente no dia 29 de junho de 1883, na localidade de Saúde, atual Dom Silvério, pelo Sr. Ernesto Ferreira Guimarães, e endereçada ao Sr. Francisco de Assis Gonçalves, residente em Itabira. Provavelmente não foi expedida no mesmo dia, pois transitou por Barra Longa - que fazia parte da linha postal e está a aproximadamente 100 km de Saúde - no dia 15 de julho, e por Ouro Preto e Mariana no dia 17 de julho. Foi recebida pelo destinatário no dia 25 de julho, conforme anotação a lápis na margem da carta.
Mas o interesse não está apenas no trajeto da carta, está sobretudo no seu conteúdo. O sr. Ernesto foi procurado pelo sr. Francisco, que queria lhe vender uma tropa de burros. O sr. Ernesto alegou que não podia comprar a “tropinha”, porque acabara de comprar outros animais e os negócios estavam “peçimos”. Justificou ainda a inutilidade em ir ver os animais, pois a compra teria que ser muito boa. Lamentou não fazer o negócio, apesar do interesse do vendedor. Ao se despedir, deixou abertas as portas para negócios vindouros.
Existem várias maneiras de se ler, estudar ou contar histórias de uma época e de uma localidade. Uma delas, bem original e pouco comum, é por meio das correspondências que chegavam ou saiam do local. Trata-se de uma parte da filatelia, para mim a mais interessante, chamada história postal. Itabira do Matto Dentro teve sua primeira agência postal mesmo antes de se tornar vila, em 1833. O decreto que em 5 de março de 1829 regulamentou o correio brasileiro, unificando-o, definindo as rotas postais e o valor das tarifas, também estabeleceu condições para a criação da agência postal de Itabira, que contava então com pouco mais de 3.000 habitantes.
Os primeiros selos brasileiros, os famosos olhos de boi, só surgiram em 1843. Até então as cartas recebiam o carimbo da agência, e o valor do porte era indicado geralmente de forma manuscrita. O carimbo de Itabira, hoje denominado carimbo precursor, por anteceder a chegada dos selos, era em legenda, sem cercadura.
Apesar da denominação de precursor, o seu uso se estendeu até 1850, com os selos denominados verticais, obliterando anteriormente os selos da emissão dos olhos de boi e inclinados. Após esse carimbo surgiu um novo carimbo circular datado, grafado apenas “Itabira”. Foi utilizado no final do Império, e seu uso se estendeu pelo início da República.
Em meados de 1897, surgiu um novo carimbo, também circular e datado, já grafado “Itabira de Matto Dentro” e entre parênteses a palavra “Minas”. Este era o carimbo postal típico do início da República.
A agência postal de Itabira fazia parte da Administração Regional de Minas, com sede em Ouro Preto. No período compreendido entre 1890 e 1910, Itabira permutava malas postais diariamente com a Administração Regional (Ouro Preto) e com as agências de Santa Bárbara, São Gonçalo do Rio Abaixo, Batêas, Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar, Conceição do Mato Dentro, Santa Maria do São Félix (atual Santa Maria do Suaçuí), Santana dos Ferros (atual Ferros). De dois em dois dias permutava malas com a Sub-Administração de Diamantina; de quatro em quatro dias, com as agências de Carmo de Itabira (atual Senhora do Carmo), Santo Afonso da Aliança (atual Ipoema), São José da Lagoa (atual Nova Era), Santana do Alfié e Antônio Dias Abaixo; de sete em sete dias, com a de Ipanema.
A mala postal expedida para Ouro Preto seguia pela linha postal conduzida por estafeta terrestre, passando por Batêas, São Gonçalo do Rio Abaixo, Santa Bárbara, Catas Altas do Mato Dentro, Santa Rita do Durão, Bento Rodrigues e Antônio Pereira. Já a mala postal em direção a Diamantina seguia por Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar, Conceição do Serro (atual Conceição do Mato Dentro), Santo Antônio do Rio do Peixe (atual Alvorada de Minas), Milho Verde e São Gonçalo do Serro (atual São Gonçalo do Rio das Pedras).
Outro documento postal que nos conta uma história interessante e nos remete a personagens importantes da vida de Itabira e das cidades circunvizinhas, no início do século XX, é o bilhete postal mostrado e descrito a seguir, que foi adquirido na Europa.
Bilhete postal de Itabira para a Bélgica. Foi transportado por estafeta terrestre, seguindo a linha postal até Ouro Preto. Daí seguiu pela Estrada de Ferro Central do Brasil até o Rio de Janeiro. Foi então por via marítima até a Europa. O carimbo de recepção em Mons, na Bélgica, é datado em 11/12/1900. Demorou, portanto, 25 dias para chegar ao destino. Esse bilhete postal, escrito em Santana do Alfié, foi postado em Itabira. Era endereçado a Madame George de Caux - Condessa Louise Clothilde Marie Joseph d’Auxy de Launois - esposa do Sr. George Ernest Félix Etienne de Caux e mãe de Raoul de Caux.
No verso do cartão escrito por Raoul, ele acusa o recebimento da carta escrita por sua mãe em 19 de outubro, esperando ter mais tempo para respondê-la longamente. Informa que ele e Didina, apelido da Sra. Bernardina Martins da Costa, com quem se casara em 29 de abril daquele ano, estão bem. Escreve sobre um processo eleitoral que transcorreu bem, afirmando que seu sogro, o Cel. José Baptista Martins da Costa - por duas vezes presidente da Câmara Municipal de Itabira, a primeira de 1900 a 1912 - tinha sido eleito por grande maioria de votos. Relata ainda que votou na Lagoa, provavelmente São José da Lagoa, atual Nova Era. Dá notícias do vinhedo, testemunhando que, no então período de chuvas e de calor, as vinhas cresciam como cogumelos.
O francês Raoul de Caux, engenheiro agrônomo, chegou a Itabira no final da última década do século XIX. Veio, a convite do Governo de Minas, ser professor de agronomia, porém virou fazendeiro e agricultor. Foi proprietário da Fazenda do Bicudo, conhecida também como Vinhedo do Alto Alfié, de onde escreveu o bilhete postal para sua mãe. Aí plantou suas vinhas, colheu suas uvas e fabricou seu vinho premiado com medalha de ouro na Exposição de Bruxelas, em 1911.
Dizem que a filatelia é o mais nobre dos hobbies. Colecionar selos é realmente um grande passatempo e pode ser muito mais do que se ater à figura do selo, pode se tornar uma grande aventura pela história, como estas que investiguei e contei, de Itabira e sua gente.
Márcio Hamilton Protzner de Oliveira, médico e filatelista, nascido em Belo Horizonte, itabirano por afinidade. Casado com Myriam Goulart de Oliveira e genro de Flávia Andrade Goulart - Favita, filha dessa terra querida.